A conclusão iminente da CPI do 8 de janeiro promete virar o jogo, lançando Jair Bolsonaro e seu círculo próximo em uma situação delicada. Nenhum dos envolvidos pode mais contar com a proteção complacente de Augusto Aras, e as consequências podem ser incertas.
O relatório final da CPI do 8 de janeiro, que está caminhando para ser aprovado nesta quarta-feira (18), marca um novo capítulo no confronto entre as instituições democráticas e o governo Bolsonaro e seus aliados mais próximos. Independentemente das implicações legais que possa ter, o próprio relatório é um ato significativo, um registro sólido das ameaças à democracia, todas elas inscritas na mesma Constituição que aqueles que as promovem tentaram minar.
Com suas extensas 1.333 páginas, o relatório documenta de forma abrangente os esforços deliberados do governo anterior para minar a democracia, culminando nos eventos de 8 de janeiro. A importância desse registro é inegável. No entanto, a responsabilidade moral e histórica, que implica reconhecer que houve uma tentativa de golpe coordenada por indivíduos que traíram seus cargos e funções, não deve substituir o processo legal de responsabilização. Na verdade, deve incentivá-lo.
Liderado pela senadora Eliziane Gama (PSD-MA), o relatório conecta os ataques às instituições democráticas, com destaque para o Supremo Tribunal Federal, à disseminação de desinformação sobre o processo eleitoral, à cooptação das instituições que detêm o monopólio do uso da força estatal, como as Forças Armadas e as forças policiais, e à estratégia de comunicação que visava polarizar a sociedade e desacreditar a imprensa. Todas essas peças se encaixavam em um objetivo comum: manter Bolsonaro no poder a qualquer custo.
Junto com as conclusões da CPI da Covid, o relatório da CPI do 8 de janeiro lança uma luz reveladora sobre o governo Bolsonaro. Ambos documentos revelam um país que não navegou à deriva, mas esteve à mercê de uma correnteza golpista, da qual escapar parecia impossível.
No entanto, há uma distinção fundamental entre os resultados das duas comissões: o relatório atual não está nas mãos de um Augusto Aras inativo. Bolsonaro não pode contar com uma arquivamento imediato, como aconteceu em 2021.
Uma CPI não tem autoridade para indiciar alguém, mas pode recomendar que as autoridades competentes, neste caso, o Ministério Público, investiguem e possivelmente acusem indivíduos. O indiciamento é uma declaração formal de que um crime ocorreu e que existem indícios suficientes de quem são os responsáveis por esse crime. O relatório da CPI do 8 de janeiro propõe o indiciamento de Bolsonaro e cerca de sessenta outras pessoas, incluindo ex-ministros de seu governo, militares e assessores. Isso sugere que ou o Ministério Público apresentará acusações caso as investigações estejam maduras para sustentar uma ação penal, ou as investigações serão aprofundadas para estabelecer as responsabilidades individuais de cada um. Se a segunda opção for a escolhida, o relatório e as provas coletadas pela CPI serão incluídos em investigações já em andamento.
De acordo com o relatório da CPI, Bolsonaro pode ser indiciado por quatro crimes: associação criminosa, violência política e os crimes de golpe de Estado e abolição violenta do estado democrático de direito. O crime de violência política parece uma interpretação forçada, e sua equiparação com violência psicológica pode ser questionada. No entanto, o cerne do relatório é que essas ações, independentemente da classificação, eram partes de uma estratégia maior de manter Bolsonaro no poder a qualquer custo.
A próxima etapa depende da Procuradoria-Geral da República (PGR), que passa por um período de indefinição desde a saída de Augusto Aras. A procuradora interina, Elizeta Ramos, permanecerá no cargo até que uma indicação seja feita por Lula e aprovada pelo Senado. No entanto, a PGR não foi projetada para ser liderada de maneira precária, e sua independência só é garantida quando o procurador-geral tem um mandato estável. A situação interina pode criar um incentivo para que o procurador-geral atue de maneira favorável ao governo em busca de uma nomeação permanente.
O tratamento dado pela PGR ao relatório da CPI do 8 de janeiro será um indicativo inicial de como Elizeta Ramos irá abordar a questão penal na disputa política entre o bolsonarismo e o lulismo. Isso promete abrir discussões sobre como responsabilizar indivíduos poderosos que usam agentes anônimos para cometer crimes em seu nome. O relatório destaca que a tentativa de golpe foi realizada por pessoas que nunca tiveram contato direto com Bolsonaro, mas seguiam sua agenda. Isso levanta a questão da “teoria do domínio do fato”, que foi discutida durante o julgamento do mensalão.
Os próximos passos dependem de como a PGR irá lidar com o relatório. A forma como Elizeta Ramos se posicionará na seara penal em relação à disputa política entre bolsonarismo e lulismo será um indicativo importante.