A atmosfera aparentemente festiva de jogos e celebrações universitárias esconde uma realidade sinistra que assola futuros médicos em formação. Recentemente, cenas chocantes de estudantes de medicina se exibindo de maneira inapropriada durante um jogo de vôlei feminino vieram à tona, lançando luz sobre a cultura de violência que permeia essa trajetória acadêmica. Médicos experientes, entrevistados pelo UOL, revelaram a sombria verdade por trás dessa aparente alegria, que frequentemente se transforma em comportamentos agressivos no mercado de trabalho.
O Quadro Alarmante
Ameaças, xingamentos, racismo e até mesmo estupros são eventos traumáticos que estudantes de medicina enfrentam desde o momento em que entram na faculdade até o início de suas carreiras. A violência, infelizmente, é uma realidade generalizada. “A violência é generalizada”, afirma André*, médico formado por uma universidade pública de São Paulo. Entretanto, as mulheres e as pessoas negras são as principais vítimas dessa cultura de violência, cujas raízes se aprofundam desde a década de 1990, quando um calouro de medicina foi encontrado morto em uma piscina.
Apesar de estados como São Paulo terem implementado leis para proibir trotes violentos, a influência das atléticas estudantis e as violações ocorridas durante festas e eventos esportivos universitários continuam a existir nas sombras, longe do conhecimento da sociedade em geral. Um exemplo recente ocorreu na Universidade Santo Amaro (Unisa), onde estudantes se envolveram em comportamentos ultrajantes em abril deste ano, mas somente recentemente o caso veio a público, resultando na expulsão de alguns envolvidos pela instituição.
A Normalização da Violência
No âmbito do curso de medicina, existe uma ênfase desmedida nas chamadas “tradições”, que muitas vezes perpetuam comportamentos sexistas e racistas. Flávia Kuhn, médica fisiatra e professora de Humanização na Saúde e no SUS na Faculdade de Medicina da USP, ressalta: “No curso de medicina existe uma supervalorização do que chamamos de tradições. Com isso, se perpetuam comportamentos machistas e racistas”. Esses eventos são um reflexo de uma sociedade que, alarmantemente, aceita o estupro e a violência como parte de sua cultura. Isso evidencia como questões de gênero, raça e classe continuam a afetar profundamente nossa sociedade.
O aumento do número de mulheres matriculadas em cursos de medicina nas últimas décadas coincidiu com um aumento nas denúncias de violações, conforme observa Flávia. No entanto, mesmo com essa mudança demográfica, os cargos de poder ainda são predominantemente ocupados por homens. “Mas quem está nas posições de poder ainda são os homens”, afirma.
Muitas vezes, a adesão a práticas violentas ocorre pela necessidade de pertencimento. “Na época, eu era uma jovem repetindo aquilo [hino] sem prestar atenção, há um senso de identidade com as atléticas”, diz Flávia.