O rótulo provocativo de “Dama do Tráfico” conferido por O Estado de S. Paulo tornou-se a peça central de uma estratégia da extrema-direita para disseminar conteúdo e fornecer justificativas para as investidas do bolsonarismo em suas escolhas de alvos políticos. Em meio a esse cenário, Luciane Barbosa, esposa de um líder criminoso no Amazonas e defensora dos direitos dos detentos por meio de uma ONG, emergiu nos holofotes após seus encontros em Brasília com autoridades do Ministério da Justiça e dos Direitos Humanos.
O desencadeamento dessa crise começou com a peculiar alcunha atribuída por O Estado de S. Paulo. O termo “Dama do Tráfico” parece ser uma novidade mesmo nas páginas policiais da região amazônica. No entanto, para o Brasil, Luciane foi apresentada com o rótulo perfeito para amplificar a relevância do caso.
A revelação recente de que sua viagem a Brasília foi financiada com recursos do Ministério de Direitos Humanos desencadeou uma série de reações. Sílvio Almeida, titular da pasta, passou a ser alvo da furiosa retórica bolsonarista, que anteriormente estava concentrada no Ministro da Justiça, Flávio Dino. Ambos enfrentam agora pedidos de impeachment.
O cerne da questão reside na dicotomia entre a essência proclamada pelos bolsonaristas – defesa da ordem e combate ao crime organizado – e a realidade obscura de sua afinidade com práticas criminosas. Sua suposta “defesa da ordem” revela-se como a defesa velada de ações como limpeza étnica, encarceramento em massa, execuções sumárias e tortura.
Num primeiro olhar, o episódio parece oferecer uma oportunidade para associar o governo Lula ao crime organizado, difamar os direitos humanos e consolidar uma postura mais rígida no tratamento de criminosos. Entretanto, detalhes e a memória recente desmentem essa narrativa.
Em 2019, o ex-vice-presidente Hamilton Mourão, figura destacada do bolsonarismo, recebeu no Palácio do Planalto o megatraficante Milton Constantino da Silva, conhecido como “Pablo Escobar Brasileiro”. Constantino foi posteriormente preso na operação Enterprise, acusado de tráfico internacional de drogas. O encontro foi supostamente sobre o “fortalecimento do patriotismo”, e apesar da repercussão, Mourão não enfrentou constrangimentos.
Esse episódio, evidentemente, escapa à memória seletiva dos bolsonaristas que agora criticam Dino e Almeida, assim como ignoram a relação íntima do clã Bolsonaro com as milícias do Rio de Janeiro e os recentes escândalos envolvendo transporte de drogas em aeronaves da FAB.
No caso de Lidiane, ela representa a sociedade civil no Comitê de Prevenção e Combate à Tortura no Amazonas. O financiamento de sua viagem visa a participação de membros desses comitês em eventos pertinentes às suas áreas de atuação. Não cabe ao governo federal investigar o passado dos membros desses comitês, tampouco escolher quem pode ou não participar desses eventos.
A controvérsia em torno da “dama do crime”, aparentemente natural, serve como uma cortina de fumaça para questões mais profundas. Ela alimenta a direita raivosa anti-direitos humanos e busca constranger um governo que se fundamenta em ideias iluministas, não medievais.